Eu sei que vocês choraram,
acenderam velas pretas na lua cheia e fizeram promessas pro tinhoso. É justamente
por isso que estamos de volta: nós adoramos um drama.
Qual seria a graça de sair postando aqui todas as semanas se não
rolar sangue, lágrimas e aqueles bonequinhos de vudu com nossa cara pedindo pra
voltar?
Então prepare o ritual, tira a roupa, banhe-se nas vísceras do
sacrifício e vem com a gente, porque hoje é dia de falar de tudo que mais
gostamos: gore, demônios e claro... pizza.
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Título original: Satanic panic
Lançamento: 2019
Duração:
85 minutos
Direção: Chelsea Stardust Peters
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Sam, uma jovem com problemas financeiros,
consegue um trabalho de entregadora de pizzas por meio de um conhecido. Em sua primeira noite de trabalho, ela acaba
aceitando uma grande entrega fora da zona de cobertura na esperança de conseguir
uma boa gorjeta, mas tudo começa a ficar meio estranho quando a gorjeta é
ignorada, a gasolina de sua moto acaba e as pessoas da casa querem usá-la como
sacrifício para um ritual satânico.
Uma virgem jogada aos demônios
A primeira vista, Satanic Panic é um filme que vai direto
ao assunto e não perde tanto tempo desenvolvendo personagens ou dando
profundidade à situação. Sua proposta quanto ao roteiro é simples: uma jovem
entregadora de pizzas precisa escapar de satanistas burgueses — nada além disso.
A diretora sabe que alguém procura esse tipo de filme não está
necessariamente interessada em um papo cabeça, mas sim em um escapismo
divertido e sangrento. Entretanto, é impossível dizer que o filme é vazio. Existem
algumas camadas de profundidade pra quem estiver interessado em observar. Durante
o filme, vamos percebendo em diálogos e atitudes das personagens que existe
algo além de satanistas ricos caçando uma virgem pro seu ritual demoníaco. Classes
sociais, religião, feminismo, virgindade e culpa, são alguns dos temas tocados
pelo filme.
Apesar de podermos identificar
todos esses temas, o detalhe que mais me chama atenção é a “inocência” da
personagem. Em quase todo filme de terror fica claro a necessidade de explorar
a burrice de certos personagens para existir facilitações narrativas, todavia,
aqui, apesar da protagonista não tomar as melhores decisões, isso soa muito
mais como uma ingenuidade perante o mundo e as ameaças que ele apresenta, do
que simplesmente estupidez. É como se ela não compreendesse o mal e não
estivesse preparada pra ele, o que acaba gerando uma dualidade um tanto
peculiar, porque mesmo tendo esse ar de inocência e não compreendendo as reais
ameaças, Sam não deixa de ser uma protagonista forte, que apesar de já ter
passado por diversos outros problemas, é obrigada a continuar se adaptando pra
lidar com as novas ameaças.
Ainda nesse ponto, algo que gosto
no filme é como vários detalhes (mesmo que bobos) apresentados no inicio do
filme, acabam tendo conexões com a história ou protagonista, e você só vai
reparando neles conforme a história se desenvolve, como se tudo estivesse ali
por uma razão. Um exemplo disso é a primeira cena do filme, em que Sam está
tocando violão e cantando uma musica que não parece fazer sentido nenhum,
parecendo que está ali só pelo non-sense e para dar um ar cômico, mas que você
acaba descobrindo a razão mais tarde e não sendo tão engraçado quanto parece. A
própria “inocência” da personagem não é gratuita, existe um motivo para ela ser
assim e, mesmo existindo poucos diálogos sobre isso, vamos descobrir por meio
deles que sua vida foi um tanto quanto diferente das outras pessoas de sua
idade.
Dito isso, podemos fazer uma
pausa nas discussões sérias, porque definitivamente não é apenas disso que o
filme trata, e aproveitar todas as tosqueiras e bizarrices que o filme nos
proporciona.
Um cintaralho da morte
Apesar de ter assuntos legais pra
pagarmos de inteligente e fingirmos que entendemos de subjetividades artísticas
e do mundo que nos cerca, nada disso seria importante se o filme não cumprisse
sua proposta como filme de “terror/humor”. E isso ele faz muito bem.
Satanic panic entrega exatamente aquilo que você busca (talvez um
pouco mais) quando decide ver um filme cuja sinopse diz “satanistas da alta
sociedade, pizza e virgem para sacrifício”. Aceitando os temas propostos nas
entrelinhas ou não, o entretenimento é garantido. Em nenhum momento o filme se
leva a sério, satisfazendo os desejos de todo fã de filmes trash: mortes
bizarras, efeitos práticos, non-sense, atuações duvidosas, roteiro que vai por
caminhos estranhos, gore, etc.
Algo que gosto bastante no filme
é que ele faz uma homenagem as produções oitentistas, mas sem perder o frescor
da modernidade. Ele consegue resgatar coisas que ficaram lá atrás e que não são
muito utilizadas hoje em dia (pelo menos em produções mais comerciais) e ainda apresentar
de uma nova forma, indo na contramão de um terror mais “realista” e “pé no
chão” ou cheios de efeitos especiais duvidosos. É claro que existem muitos
filmes atuais que bebem dessa fonte oitentista e que aproveitam tão bem quanto
ou até melhor que Satanic Panic, mas acho importante destacar isso por ser um
filme que possivelmente tem/terá um alcance maior por ter alguns atores um
pouco mais famosos no elenco.
Ok, o filme tem gore, nojeiras,
algumas discussões relevantes, mas existe um outro fator que deixa tudo ainda
mais interessante, que é a perspectiva feminina sobre os filmes de terror.
Horror feminino
"Women
have a relationship with blood that men do not and will never have. Also,
unfortunately, in the world fear is something women have to live amongst every
day in their daily life. It's a way to exorcise any of those demons you're
carrying around that no other genre lets you do." (STARDUST, Chelsea)
Se você é como nós e gosta de
ver o filme além das tripas, vai perceber que ele é um tanto quanto diferente
do que estamos acostumados, afinal temos uma mulher na direção, dando uma nova
perspectiva e mostrando que é possível fazer filmes de terror sem os
estereótipos femininos com pouca roupa sendo alvo de assassinos predadores de
armas grandes. Ou o conservadorismo típico dos filmes dos anos 80 que sempre
matavam jovens enquanto transavam, como um castigo divino por se deixar levar
pela luxúria. Ou a exploração da nudez feminina, sem necessidade, em diversos
títulos de terror.
Resumindo, por mais que amemos o gênero, não dá pra negar que
o terror costuma tratar as mulheres de um jeito um tanto quanto questionável. E
isso não é sem o motivo: boa parte do público do gênero anseia por sangue e
peitões, mas é ótimo ver que as coisas estão mudando com o tempo. Não apenas
por existirem mais mulheres na direção, mas também por elas apostarem em ideias
diferentes que não se resumem a um louco armado correndo atrás de boazudas. Não
me entenda mal, nós adoramos os slashers, mas não podemos ficar repetindo as
mesmas fórmulas eternamente sem inová-las/atualiza-las.
Dito isso, vamos nos ater ao
filme. Satanic Panic é um filme sobre
mulheres, todos os papeis de destaque são destinados a elas, os homens no filme
não passam de elenco de apoio. O protagonismo, as vilãs, o elenco coadjuvante,
ou seja, o poder está todo na mão das atrizes. Aqui o elenco masculino não é
explorado nem mesmo como ameaça, o que é muito interessante, pois todos os
homens acabam representando uma certa infantilidade, seja na figura do homem
babão que não pode ver um rabo de saia ou na figura daquele que acha que vai
resolver os problemas com seu pau. Pequenas ilusões de poder em um mundo
dominado por mulheres.
A partir dessa postura, a
diretora, como dito anteriormente, vai entrando em outros temas ligados ao
assunto com certa ironia, jogando na cara do telespectador cenas cômicas porem
cotidianas: homens se dizendo feministas prestes a abusar de alguém, a
exaltação da virgindade, pessoas de uma mesmo grupo puxando tapete um do outro
em busca do poder, etc.
Enfim, as ameaças que Sam
enfrenta no filme são uma alusão às ameaças sociais diárias, uma sátira social com
um pouco mais de humor e sanguinolência. Se você prestar atenção, verá que
praticamente todos os personagens que estão ao redor da protagonista tentam se
aproveitar dela de alguma maneira, a relação nunca é balanceada; sempre há um
interesse. O conhecido arruma o emprego pra ela porque tem interesse sexual, o
dono da pizzaria se aproveita da sua situação econômica para conseguir um
trabalho barato, as pessoas que pedem pizza nunca querem só a pizza, os
satanistas (que não se diferem muito dos cristãos que conhecemos) querem ela
como oferenda para conseguir dinheiro e poder, outro se propõe a ajuda-la mas
de um jeito bem duvidoso. E assim por diante. O mundo é uma grande ameaça que a
todo momento está obrigando a protagonista a ser mais resistente.
Entretanto, apesar de haver muita
merda ao seu redor, Sam encontra o suporte em outra mulher que, mesmo de um
mundos e criações completamente diferente, está passando por coisas
semelhantes. Como se a diretora quisesse dizer: “eu sei que tá foda, mas se uma
der a mão pra outra, é possível lutar”. Apesar de parecer uma mensagem um tanto
quanto positiva (e nesse sentido é), o filme deixa claro que o problema é sempre
maior do que ele aparenta, seja pelo problema ser cíclico (um malvado cai;
outro toma seu lugar), seja por sempre haver alguém mais forte e você nunca
saber o tamanho do problema a ser enfrentado ou, até mesmo, por ele não ser
necessariamente externo ao indivíduo (no caso, a protagonista).
Dois coelhinhos peludos
Por fim, outro detalhe
que o filme explora é a questão do nome da protagonista, Sam. Durante todo o
filme, Sam vai acabar encontrando diversos outros personagens que também são
chamadas de Sam, e é algo tão recorrente que não podemos dizer que está ali por
acaso. E é curioso perceber como as relações com o nome vão se alterando. No
início, por ela ainda demonstrar certa ingenuidade, o outro Sam se utiliza
daquilo para tirar proveito dela, porém, no fim quando ela já está mais ciente
do mundo que a cerca, ela passa a ter mais controle não apenas da situação, mas
também do seu nome.
Não sei exatamente a intenção da
diretora/roteirista com essa coisa dos nomes, mas uma das interpretações que
podemos tirar é que os outros personagens são projeções da protagonista, e cada
um desses outros personagens refletisse o momento pelo qual ela passa. O filme
reforça que existe uma conexão entre as/os Sams do mundo. É claro que não
existe uma obrigatoriedade, mas ela sente necessidade de fazer parte disso,
talvez por ser uma forma de pertencer a algo, ou até mesmo se conhecer melhor,
afinal compartilham algo em comum. Entretanto, a vida (ou no caso o filme), vai
mostrando que as coisas não são bem assim, e que ela precisa entender o próprio
nome, sem depender dos/das “xarás”.
Ou seja, esse conflito com o
próprio nome pode ser visto como um conflito com sua própria identidade, há
tantos Sams por ai: “Quem sou eu?”, “Qual é o meu lugar no mundo?”, “Qual a
minha ligação com eles?”. Não acho que o filme explora tão bem esse assunto,
pelo menos da perspectiva que eu vejo, mas, no fundo, ele acaba caindo naquela
discussão sobre somente se conhecer a partir da perspectiva do outro, afinal, a
protagonista começa a amadurecer sua visão a partir do momento em que existem
outros Sams olhando pra Sam.
Devo pedir minha pizza com
sangue de virgem e linguiça de bode?
Logico, não há sabor melhor para
comer após dançar pelado na floresta em volta da fogueira enquanto assiste
pessoas de bem queimando.
Apesar de um filme divertido e
com boas ideias, Satanic panic não
tem nada de muito inovador. É claro que é bacana ver como as ideias são
desenvolvidas e a mudança de perspectiva é trabalhada, mas, no fim, ele é um
filme de terror que segue os padrões do gênero. Temos uma “final girl” que
mesmo enfrentando perigos, vai dar a volta por cima. Temos mortes estilizadas
para satisfazer a sede de sangue dos espectadores, efeitos duvidosos (porem
divertidos), cultos satânicos, etc.
Mas não me entendam mal, a falta
de inovação em questão de roteiro não é nenhum problema. O filme parece ter
plena consciência disso e utiliza isso a seu favor. Ele pega essa estrutura que estamos cansados de ver
(mentira: é difícil cansar desses pastelões do terror) e dão uma nova vida,
conseguindo encontrar certa singularidade mesmo em meio a tantas produções, e
parte disso é justamente pelas discussões que podem ser levantadas nas
entrelinhas, mesmo que possivelmente muitos não irão ignorar.
Então, independente de querer se
envolver nessas discussões pseudo-inteligentes que levantamos ou simplesmente
ver um filme trash divertido, Satanic
Panic é uma obra que merece atenção de qualquer um que curta o gênero,
servindo até mesmo pra apresentar para coleguinhas que não conhecem muito do
universo trash, antes de ir pras drogas mais pesadas.
Trailer
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