Olhe pra
trás: está vendo a bruxa? Calma, não precisa ficar assustado, ela agora também
faz parte da sua vida. Você pode tentar fugir, mas ela sempre irá te encontrar.
Então apenas aceite a presença dela em sua vida. Tirando alguns sustos, ela não
fará nada e não irá te machucar, desde que você não a incomode. Mas lembre-se:
nunca, em hipótese nenhuma, tire a costura de seus olhos e sua boca, não
queremos que ela saiba quem somos e, também, não podemos escutar o que ela tem
a dizer. Ignore sua presença e siga sua vida, é tudo que podemos fazer.
“Mathers
os liderou em prece, e a maior parte da comunidade se juntou a ele. Eram
pessoas que conheciam umas às outras por
toda uma vida, que respeitavam umas às outras e se amavam de suas próprias
maneiras peculiares, como normalmente acontecia em pequenas cidades do norte do
estado. Mas Steve notou que todos haviam passado por uma mudança radical. Ele
sentiu isso com ainda mais força quando eles se afastaram, pouco depois,
silenciosamente e desviando os olhares. Sobre os habitantes da cidade, havia
caído uma resignação que Steve achou ainda mais interessante do que a tensão anterior.
Eles
pareciam pessoas que sabiam ter feito algo pavoroso, algo irreversível… e algo
com o qual poderiam facilmente viver.”
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Título original: Hex
Autor: Thomas Olde Heuvelt
Ano: 2016
Editora: Darkside books
Páginas: 365
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Black
Springs é uma pequena cidade do interior que há mais de trezentos anos é
assombrada pela bruxa Katherine. Acorrentada e com a boca e os olhos
costurados, ela vaga sussurrando suas maldições pela cidade. Para acompanhar os
passos da bruxa e evitar que os forasteiros descubram seus segredos, a cidade
criou o HEXapp, um aplicativo de celular para que as pessoas notifiquem e
acompanhem a localização da bruxa. Apesar da situação incomum e do constante
clima de ameaça, as pessoas aprenderam a lidar com a presença de Katherine...
mas nem todas.
É nois
que voa, bruxona
Após ser
acusada de bruxaria e queimada na fogueira, Katherine Van Wyler pode ter
morrido mas sua presença continua viva em Black Springs. Mesmo depois de ser
queimada viva ela permanece vagando pela cidade maldizendo os seus carrascos e
não há nada que os moradores possam fazer para se livrar da bruxa, pois sempre
que tentam algo novo coisas sinistras acontecem: mortes, mudanças no
ecossistema, eventos inexplicáveis, etc. A única coisa que os moradores locais
podem fazer é aprender a conviver com os seus segredos, porque nem fugir eles
podem.
Ao longo
dos anos a cidade foi se adaptando à indesejada presença de Katherine que,
apesar de manter alguns padrões, pode aparecer a qualquer momento em qualquer
lugar da cidade. Trezentos anos após a maldição continuar viva, já em 2012 e
com os avanços tecnológicos, a cidade desenvolveu o HEXapp, um aplicativo
social onde os moradores compartilham informações sobre a bruxa, postando em
tempo real informações sobre sua localização e comportamento. Além disso, a HEX
(organização que criou o aplicativo) junto com o conselho da cidade também
monitora as câmeras e os meios de comunicação da cidade, principalmente
internet, para evitar que o segredo da bruxa saia das fronteiras de Black
Springs, algo que poderia trazer ainda mais problemas.
Nesse
cenário de bruxas, segredos e pessoas oprimidas pela presença de Katherine,
Thomas Olde Heuvelt nos leva para Black Spring, para conhecermos melhor a vida
de seus moradores e, também, descobrirmos que a cidade tem muito mais segredos
enterrados.
Tem bruxa
pra todo mundo
Algo bem
bacana em HEX é que, apesar de acompanharmos alguns personagens, a verdadeira
protagonista de toda a história é a cidade. A cada capítulo, o autor vai
alternando entre os personagens, dando diversas perspectivas diferentes sobre a
mesma situação e, de certo modo, abrindo discussões diferentes em relação ao
problema comum, Katherine. Apesar de sermos apresentados a um número razoável
de moradores da cidade, vamos acompanhar principalmente quatro deles: Steve,
Tyler, Griselda e Robert. Cada um vai ter os seus próprios arcos e um tipo de
relacionamento com Black Spring e, consequentemente, com a bruxa. Mas, como
disse, mesmo tendo historias bacanas isoladamente, elas realmente se destacam
quando são vistas em perspectivas e formam esse macroambiente.
Esse tipo
de narrativa adotada pelo autor ajuda a dar vivacidade e credibilidade pra
história, afinal cada pessoa reage diferentemente a uma mesma situação. Se
temos posições diversas sobre biscoito x bolacha, imagina como lidaremos com
uma bruxa em nosso cotidiano. Algumas pessoas vão apenas aceitar, outras vão
querer fazer algo, algumas vão achar que é uma mensagem divina… e mesmo dentro
dessas diferentes perspectivas vão tendo outras subdivisões. Nem todos que
querem fazer algo em relação a bruxa vão querer seguir pelos mesmos meios.
Então mesmo não sendo perfeito, afinal, isso poderia alongar bastante o livro,
o autor faz um bom trabalho em construir esse
cenário e mostrar como as pessoas são diversas em todos os assuntos, mas
principalmente nesses mais delicados.
Sendo
assim, se, por um lado, temos uma discussão sobre indivíduos lidando com uma
bruxa em seu cotidiano, por outro, teremos pessoas diferentes tendo que lidar
com opiniões diferentes da sua em uma comunidade que vive em uma situação que é
complicada pra todo mundo. Então, como você já deve imaginar, a bruxa é apenas
um dos elementos pra uma treta muito maior. Afinal, podemos não ter uma bruxa
na nossa cidade (pelo menos não literalmente), mas acho que todo mundo sabe o
quão difícil é conviver com os amiguinhos com opiniões totalmente opostas a
sua.
Botando
lenha na fogueira
Como disse
anteriormente, apesar da cidade ser a grande protagonista, vamos acompanhar
quatro personagens, cada um com seus dilemas e cada um tendo uma relação
diferente com a bruxa e com a comunidade. Vou fazer um breve panorama sobre
cada um sem entrar muito na historia e não revelar mais do que deveria, mas que
permitirá pontuar algumas discussões importantes.
Tyler é um
jovem estudante do ensino médio que tem como principal hobby fazer vídeos para
o youtube, andando com sua câmera de um lado pro outro ele está sempre filmando
seu dia a dia não apenas para atualizar seu canal e seguidores, mas também para
coletar materiais para um projeto secreto que ele tem com outros jovens. Esse
projeto tem como objetivo coletar informações sobre Katherine (mesmo que seja
proibido registrar fotos/vídeos ou ate mesmo comentar na internet sobre a
bruxa), com o objetivo de encontrar uma solução para a maldição. Postando em
uma página secreta, esses jovens vão fazendo experimentos para compreender
melhor os padrões e comportamentos da bruxa e quem sabe encontrar um meio para
libertar a cidade.
Steve, pai
de Tyler, é um médico e professor que carrega a culpa de ter estabelecido sua
família em Black Spring, condenando todos a viverem sob a maldição da bruxa.
Vivendo na cidade com sua mulher e seus dois filhos, e trabalhando em Nova
York, ele vive em um constante dilema moral tendo que lidar com a criação dos
filhos que ele considera adequada e com as complicadas regras (e pessoas) de
Black Spring.
Griselda é
uma mulher sofrida que passou por diversos abusos e traumas, principalmente por
seu falecido marido, após a morte do mesmo ela assumiu o controle do açougue da
cidade. Sendo tratada com um certo sentimento de pena pelo restante da comunidade
e vivendo com seu filho rebelde, Griselda vive em um constante conflito sobre
suas crenças e sobre sua posição/obrigação na cidade. Ela acabou encontrando um
pouco de conforto na figura de Katherine, acreditando que a bruxa não deveria
ser temida, mas sim tratada com respeito e compreendida.
Por fim,
temos o Robert Grim, o supervisor da HEX. Ele é o responsável pela organização
que monitora a bruxa — e, consequentemente, os habitantes de Black
Spring — para que o segredo da cidade permaneça dentro de suas
fronteiras. Também membro do conselho local, ele acaba assumindo a
responsabilidade de quase tudo que envolva forasteiros, como evitar que pessoas
de fora comprem imóveis na cidade ou esconder a bruxa dos turistas em datas
festivas e derivados. Assim como Steve simboliza a ponte entre Black Spring e o
exterior, Robert funciona como a ponte entre o concelho e a população, sempre
estando no meio das bagunças da cidade.
É claro
que haverá muitos outros personagens importantes, como o filho da Griselda, o
prefeito e líder do conselho, o padre, etc. Mas é a partir da perspectiva
desses quatro que vamos conhecendo os outros.
Burn,
witch, burn
Como você
deve ter percebido pela breve descrição dos personagens “principais”, HEX
é um livro que vai tratar de diversos assuntos interligados e que dialogam
entre si a todo momento. A complexidade da cidade e dos moradores acabam se
sobressaindo ao da figura principal do livro, que é a bruxa.
Não sei se
é somente eu, mas sinto uma grande influência de Stephen King na obra, desde a
escrita até algumas homenagens bem claras. Ao longo da trama, vamos vendo
algumas das fontes utilizadas pelo autor, entretanto, a referência mais clara
está justamente na criação da trama, consistindo em utilizar de um elemento
sobrenatural para discutir comportamento humano. É claro que a bruxa é
importante e é claro que ela é o centro da história, mas o grande poder da
história está nas pessoas comuns e não no fantástico, estando em levar o leitor
a observar comportamento humano diante de uma situação adversa, algo que
Stephen King faz constantemente e faz muito bem. A bruxa de certo modo é um
detalhe, pois poderíamos substituir sua figura por algo mais concreto e menos
irreal, e ao mesmo assim chegaríamos a um mesmo resultado: o problema são as
pessoas.
Sendo
assim, com Black Spring e com a figura da bruxa, o autor consegue criar um
microcosmo da sociedade para discutir, apontar e criticar, muitas das nossas
ações ou posições diárias diante de um mundo cada vez mais complicado. Então,
mesmo sendo classificado como terror e existindo motivos pra isso, HEX
também acaba tendo diversas outras facetas, pois ao mesmo tempo em que ele nos
entretêm com mortes, mistérios e situações bizarras, ele também levanta
reflexões sobre assuntos diversos e relevantes.
Com isso,
ao terminar o livro chegamos a conclusão que independente de ser pequena ou
grande, toda cidade tem a sua própria bruxa e cada pessoa vai lidar com ela de
uma maneira diferente, independente de que bruxa seja essa (e se ela realmente
for uma bruxa). Sempre existirão pessoas que vão querer simplesmente varrer pra
debaixo do tapete, afinal, ela sempre esteve lá, pra que vai tentar mudar algo
agora? Outras vão querer buscar mudanças, seja pela força ou por meios mais
éticos. Algumas instituições, como a igreja, vão utilizar disso pra conquistar
mais fieis. Outras, como o governo, pode usar como um instrumento de medo. As
massas sem uma opinião formada podem acabar atraídas por discursos que levam a
barbárie, etc. Ou seja, não precisamos de uma bruxa no sentido literal para
vivenciarmos todos os conflitos de Black Spring, mas talvez a ficção seja
importante pra refletirmos um pouco sobre a realidade.
Alguém me
indica um hotelzinho em Black Spring?
Eu arrisco
dizer que HEX, enviado pra gente pela Darkside, é um dos meus
livros de ficção favoritos da editora, junto com Fábrica de Vespas.
É o
tipo de obra que se sai muito bem naquilo em que se propõe. Mesmo misturando o
terror com outros gêneros e discutindo questões sociais, em nenhum momento ele
soa forçada ou prepotente de querer ser mais do que aquilo que é. O autor
consegue equilibrar tudo e entregar uma história coesa e interessante, que ao
mesmo tempo em que pode causar um pouco de medo e nojo pelo terror e pelo gore,
também abre pra reflexões sem precisar quebrar a narrativa.
Como disse
anteriormente, são nítidas as influências do autor. Ao meu ver, a mais forte é
a do Stephen King, mas também é possível ver sinais da literatura mais clássica
do gênero. Mas mesmo sendo evidente o seu background, o autor consegue mostrar
sua própria identidade misturando o clássico com o moderno. Ao mesmo tempo em
que sua história tem um clima de historias clássicas sobre bruxas (cidade pequena,
bruxa condenada a fogueira, uma vila conservadora, as questões morais
referentes a condenação, etc), também temos esse ar moderno de aplicativos de
celular e câmeras monitorando a bruxa, um personagem que faz vídeos pro
youtube, etc. E isso cria um clima interessante porque acaba criando essa
dualidade entre o velho e o novo, como se fosse uma homenagem contemporânea as
histórias de bruxa.
Outro
ponto positivo é a constante quebra de expectativas que o autor propõe. Pelo
menos comigo, sempre que eu achava que sabia o caminho que a historia ia tomar,
ela acabava tomando um outro rumo, principalmente no fim da primeira parte (se
você leu, sabe do que eu estou falando). É claro que logo nas primeiras paginas
já dá pra sacar que a verdadeira intenção é discutir a cidade e não a bruxa,
mas a forma que ele faz isso acaba se destacando, saindo da linha óbvia que eu
acreditava que iria seguir. Um outro ponto que me agradou foi deixar muito
pontos sobre a bruxa em aberto, criando o ar de mistério e duvidas sobre as
suas intenções por toda a trama.
Enfim, há
diversos outros assuntos que poderia abordar, mas essa resenha já esta longa o
suficiente e acredito que é o suficiente pra despertar sua curiosidade. Sendo
assim, acho que HEX é um livro que indico pra todo mundo que gosta de
histórias de bruxas e terror em geral.
A edição
da Darkside tá bem bonita e merece e estar na sua estante, caso eu tenha me
esquecido de mencionar. Então já liga pra sua agencia de viagens e reserva seu
hotelzinho em Black Spring e vem curtir umas bruxaria com a gente.
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