Nós sabemos bem que se você está lendo isto aqui
é porque já deve ter lido um bocado de livros do Stephen King, autor que apesar
de não ter muitas resenhas neste blogue, está presente como má influência para
nossos pensamentos. É bem provável que existisse um dedinho podre do King já
quando essa pagina de extremo mau gosto foi concebida. Particularmente, apesar
de já ter lido muitos livros dele e ter me perdido em diversas histórias, hoje
não falarei de seus romances, mas sim de sua vida, que não é tão assustadora
quanto seus livros, porem é tão interessante quanto. Portanto, pegue seu
triciclo e vamos dar uma passeada pelo coração assombrado do rei.
““Você tem de ser meio doido para ser escritor
porque tem de imaginar mundos que não existem”, afirmou. “Você está ouvindo
vozes, está fantasiando, está fazendo tudo o que se diz às crianças que não
façam. Ou então nos mandam distinguir entre a realidade e essas coisas. Os
adultos vão dizer: ‘Você tem um amigo invisível, que lindo, você vai superar
isso’. Escritores não superam isso.””
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Título original: Haunted heart:
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Nessa biografia não-autorizada, a autora Lisa
Rogak mergulha na vida de um dos escritores mais populares e temidos do mundo,
Stephen King. Apesar de sua obra gozar de uma gigante reputação e das suas
histórias estarem por todos os lugares, não é todo mundo que conhece o homem
por trás dos textos assustadores.
Coração assombrado tem como objetivo desmistificar a figura de
Stephen King, deixando o horror um pouco de lado e investigando as diversas
fases da vida do autor (a infância pobre, o sucesso repentino, o problema com
drogas, etc.). Lisa Rogak permite que o leitor conheça um pouco mais da vida de
King e compreenda melhor a origem de suas historias e, consequentemente, de
seus próprios medos.
Por trás dos medos
Independente de ir atrás ou não, todo leitor do
King acaba conhecendo um pouco de sua vida pessoal. Não só pelos romances que
carregam bastante de sua personalidade (o seu gosto musical evidente, o apreço
pela cultura pop, seus medos, a importância da escrita, as indiretas...), mas
também pelos prefácios em que ele conversa um pouco com você antes de partir
para a história. Pessoalmente, isso é algo que sempre achei muito bacana,
porque muitas vezes você passa a entender melhor o que ele está dizendo ou a
origem da trama. O livro deixa de ser apenas uma história de terror e passa a
ter outros significados. Afinal os monstros do King são apenas mecanismos pra
falar sobre pessoas e seus medos.
Coração assombrado é como uma conversa entre fãs do King. Por ser
uma biografia não-autorizada, todo o livro é composto por informações que estão
espalhada por aí, entrevistas de diversas épocas, outras biografias, filmes e
livros do próprio King, estudos sobre sua obra, etc. Então vira e mexe, se você
é leitor, vai reconhecer algumas histórias, mas tudo é tratado com um pouco
mais de profundidade, afinal envolveu muito mais pesquisa.
Um exemplo disso é Carrie, a estranha.
Você provavelmente sabe que o King tinha jogado a história no lixo e que foi
sua mulher Tabitha que acabou resgatando a história, falando que ela tinha
potencial. No fim, Carrie acabou se tornando o primeiro livro publicado
e de sucesso. Mas provavelmente você não saiba que a ideia do livro surgiu de
uma aposta, que a protagonista foi inspirada em uma colega de classe, que a
Tabitha ajudou em sua confecção por se tratar de uma personagem que lida com
problemas femininos, etc. Assim, durante a leitura vamos descobrir diversas
curiosidades que tornam as próximas leituras/releituras muito mais
interessantes.
É muito interessante ver de onde vem a ideia de
algumas historias, a relação que o autor teve com elas, como foi o processo de
escrita, os momentos em que ele empacou em algum romance, a relação com as
editoras, entre outras curiosidades. Uma coisa que eu não sabia, ou pelo menos
eu não lembrava, é que O cemitério foi um livro que o King não gostava.
Ele o achava muito pesado e pensava que o livro não deveria ser publicado, por
isso, acabou o enviando para a editora só pra resolver algumas questões
pendentes.
Apesar de ajudar a conhecer melhor a obra, a
biografia também nos mostra o lado mais pessoal do autor que, para as pessoas
que não estão familiarizadas, pode parecer um pouco estranho, afinal, mesmo que
muito de sua personalidade surja nos livros, ele é uma pessoa bem diferente
daquilo que esperamos ao ler seu texto. Desculpe decepcionar, mas o King não
come criancinha no café da manhã.
Coração assombrado, porém
bonzinho
Apesar de em diversos momentos Stephen King dizer
que não consegue entender o motivo das pessoas se interessarem por sua vida
pessoal, depois de ler Coração Assombrado fica claro o motivo de tantas
pessoas quererem saber mais de sua vida pessoal. É claro que pra ele as suas
historias são muito mais interessantes que sua biografia, mas de certo modo uma
coisa complementa a outra, pois é evidente que se não fossem certos aspectos da
sua vida, é bem provável que tudo fosse bem diferente e eu não estaria agora
falando de um livro sobre ele, pois talvez nem existisse biografias a seu
respeito.
É claro que toda biografia tem seus problemas,
sempre haverá um foco maior naquilo que é relevante, e aqui não é diferente.
Por mais que a Lisa Rogak se preocupe em falar sobre o autor desde a infância,
de seus problemas e de sua família, o livro sempre será direcionado pro lado da
carreira. Ao mesmo tempo em que esse problema é visível, porém, fica a sensação
de que não daria pra ser muito diferente, porque a vida do King gira em torno
da literatura; não dá pra pensar em Stephen King sem pensar em livros, seja
escrevendo ou lendo.
Logo quando criança, seu pai saiu pra comprar
cigarros e nunca mais voltou. Sozinha e com dois filhos, sua mãe teve uma vida
bem complicada. Mesmo com as dificuldades financeiras e das varias mudanças de
casa, no entanto, a mãe de King sempre estimulou seus filhos a lerem. Então,
desde criança tanto Stephen quanto o irmão sempre gostaram de livros e
quadrinhos. E com o tempo isso só foi se intensificando: ele começou a se
interessar por cinema, e logo depois de assistir filmes ele analisava as
sequencias e, até mesmo, reescrevia do seu jeito. Aos poucos ele começou a
escrever as próprias historias e sua mãe lhe pagava 25 centavos por cada uma.
Quando ganhou a primeira maquina de escrever passava boa parte do dia nela. Ou
seja, antes da adolescência, ele já tinha sido picado pelo monstro da
literatura, um monstro que nunca mais ia largar.
Não
vou adentrar muito na vida do King, afinal o intuito dessa resenha é apresentar
e recomendar o livro. Além da infância, a biografia também vai falar sobre a
juventude, sobre os jornais do colégio no qual Stephen participava (e os
problemas que ele teve com isso), sobre o período da faculdade, o seu
relacionamento com a Tabitha e as dificuldades pelas quais eles passaram, os
filhos, o sucesso, o amor pelo baseball, os envolvimentos políticos, os
problemas com álcool e drogas, a vida depois da fama, sua produtividade, etc.
Enfim, apesar de você sentir que tá faltando muita coisa da vida dele a ser
contada, a autora consegue dar um panorama bem legal sobre quem é o Stephen
King.
Eu sou suspeito pra falar, afinal eu comecei a
ler por causa desse moço, então só direi o seguinte: você acaba o livro
querendo dar um abraço em King, pois, apesar de ser um dos autores mais
vendidos e famosos, ele continua sendo uma pessoa muito simples e que sempre
está disposta a ajudar os outros. Isso é algo que chega a ser bem engraçado em
alguns momentos, pois apesar de estar nadando em dinheiro ele se recusava a
pagar/comprar certas coisas, como, por exemplo, uma história de que ele saiu de
um bar e foi pra outro pelo simples fato de que não queria pagar a taxa de 5
dólares cobrada (ou algo do tipo). Mas apesar de ser “mão de vaca” com algumas
coisas ele era totalmente generoso com outras, como pagar faculdade de alguns
jovens que não tinham condição.
Há vários outros exemplos disso: mesmo depois de
estar com vários livros na lista de mais vendidos, ele continuava mandando
contos pra revistas pequenas para ajudá-las; ele vendeu algumas de suas
histórias por preços simbólicos para que pessoas pudessem fazer adaptações
cinematográficas (isso explica muita coisa); mesmo depois de famoso ele aceitou
dar aulas de escrita criativa, algo que ele levava muito a sério; sem contar as
diversas ONGs que ele e sua mulher criaram e ajudaram.
Enfim, apesar de ter um dedinho podre na escrita,
ele parece ser o tipo de pessoa que queremos por perto.
O King é pop
Uma questão bem interessante que é discutida na
obra, e que sempre esteve presente na vida de King, é o eterno embate entre o
popular e a “alta literatura”. Desde a infância, King sempre se interessou e
viu beleza na cultura popular, algo que trouxe diversos conflitos nos tempos de
faculdade. Ele nunca entendeu de fato o motivo de existir essa divisão entre a
“boa” e a “má literatura”, afinal ambas tem seus valores. Tanto que sempre que
alguém o via lendo livros de terror ou coisas do gênero, acabavam torcendo o
nariz e perguntando porque ele tava lendo aquelas “porcarias”, principalmente
em um curso de letras.
Apesar das críticas e de ter tido contato com os
grandes nomes da literatura, ele nunca abandonou os “livros baratos de capas
horríveis”. Não sei se estou interpretando corretamente, mas me parece que o
King achava uma certa ingenuidade você se aprofundar em uma literatura clássica
e simplesmente ignorar as produções contemporâneas populares, pois são esses
livros que estão dialogando diretamente com as pessoas. Sem contar que muitas
vezes essa segregação é baseada em puro preconceito, como se o popular fosse
sinônimo de baixa qualidade.
Isso sempre foi —
e provavelmente continua sendo — uma luta dele.
Logo na faculdade, percebendo a hostilidade dos colegas e professores com a
literatura mais comercial, além das diversas discussões, ele se propôs a montar
aulas pra discutir esses livros ignorados na academia. Mas, apesar da opinião
forte sobre isso, dá pra sentir na biografia que é algo que ainda o chateia um
pouco, porque ele é sempre visto como um escritor de terror e muitas pessoas
acabam não o levando a sério. Sempre que ele recebe prêmios de literatura os
críticos acabam menosprezando e falando que ele não merecia ou coisas do tipo, já
que ele não escreveria literatura, mas sim livros de terror. Assim, por mais
que ele seja um dos autores mais vendidos e continue relevante há mais de
quarenta anos, ele ainda parece sentir por não ter sua obra reconhecida como
literatura.
Devo me assustar mais com o King?
Obviamente. E depois de ler a biografia você vai
ficar ainda mais interessado em ler/reler as obras dele.
Apesar de não ler King na mesma quantidade que
lia antigamente, ele é um autor que eu sempre tento acompanhar e ler algo de
vez em quando. Mas depois de terminar Coração Assombrado eu fiquei com
muito mais vontade de voltar a mergulhar em suas histórias, tanto as novas
quanto aquelas que eu já conheço. É bem interessante porque é uma leitura que
permite você redescobrir a obra dele, afinal muito de suas inspirações vem de
suas vivências e de coisas que ele observa.
Mesmo sendo uma biografia, ela tem um ritmo bem
legal. A autora organizou todas as informações em ordem cronológica, escrevendo
de uma maneira bem direta e sem muitos cortes, formando um livro bem coeso e
dinâmico. Mas é claro que o livro também sofre dos problemas que toda biografia
de uma pessoa ainda viva sofre: ele parece incompleto e fica a sensação de que
acaba do nada. Ainda mais no que diz respeito a uma pessoa como o King, que tem
um ritmo totalmente maluco de produção (só o tempo que levei pra escrever essa
resenha ele ja deve ter publicado uns três livros novos).
Coração assombrado foi publicado pela Darkside, que mando pra gente
em parceria, e tem uma edição bem bacana. Além do texto, o livro também conta
com uma cronologia, que mapeia por data os eventos importantes na vida do King
e, também, as referencias bibliográficas usadas pela autora, algo que é bem
interessante caso você tenha interesse em se aprofundar mais na vida/obra do
King. Apesar da edição estar bem bonita, com uma capa bem chamativa, o corte
das paginas em branco e vermelho e diagramação bacana, eu senti falta de fotos
e imagens que complementassem o texto. Posso estar meio mal acostumado, mas é
meio estranho uma biografia que não conta com esse tipo de coisa.
Enfim, Coração assombrado é um livro que
merece ser lido não só pelos fãs de King, mas por todo mundo que tenha algum
interesse pelo autor. Se você nunca leu nada, mas tem alguma curiosidade, essa
biografia seria bem interessante pra se familiarizar com o autor e entender um
pouco do seu trabalho. Então pode ir atrás do seu livro sem medo... ou
melhor... com medo.
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